"A gente nunca podia apreciar, direito, mesmo as coisas bonitas ou boas que aconteciam. Às vezes, porque sobrevinham depressa e inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou esperadas, e então não tinham o gosto de tão boas, eram só um arremedo grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam também, de lado e de outro, não deixando limpo o lugar. Ou porque faltavam ainda outras coisas, acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas, para o completo. Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a gente sabia que elas estavam caminhando, para se acabar, roídas pela horas, desmanchadas [...]”.1
Neste trecho do conto Os cimos, Guimarães Rosa expõe de forma poética aquilo que já preconizavam os antigos mestres iogues: não é possível encontrar satisfação duradoura no turbilhão da vida, ou seja, com o que é externo ao ser.
“Segundo a percepção dos mahariṣis, os grandes sábios da Índia antiga, buscar a paz e a satisfação no mundo externo não pode proporcionar o verdadeiro contentamento, e, sim, satisfações momentâneas e passageiras, uma vez que as três forças que regem este universo – criação, preservação e destruição – tornam todas as coisas efêmeras, impermanentes", diz Osnir Cugenotta, professor de kriya yoga, método psicofisiológico2 que consiste em disciplina física, controle mental e meditação3.
“ 'Sam' significa conectado com, em conjunto; 'tuṣ' significa tornar-se calmo, estar satisfeito com qualquer um ou qualquer coisa, em paz. Santosha pode ser compreendido como estado de total conexão com a paz e a satisfação”, explica o professor.
Santosha integra a lista de preceitos éticos do yoga, isto é, recomendações sobre como interagir com os outros e consigo mesmo. Esses preceitos são, respectivamente, denominados yamas (não violência, verdade, não roubar, não desvirtuamento da sexualidade e desapego) e niyamas (limpeza, contentamento, determinação, autoconhecimento e devoção).
Primeiro e segundo membros do yoga descritos pelo sábio Patañjali (250 a.C. - 250 d.C) nos Yogas Sutras, obra fundamental da filosofia do yoga, não por acaso os yamas e niyamas vêm antes dos outros seis membros - posturas (asanas), práticas respiratórias (pranayamas), introspecção dos sentidos (pratyahara), concentração (dharana), meditação (dhyana) e êxtase (samadhi). Sem a prática da disciplina ética, segundo Patañjali, o iogue não estaria qualificado para as outras. Mas como viver em santosha diante da impermanência das coisas?
Outra estratégia é ir na contramão do que Cugenotta chama de “natureza centrífuga da mente”, que procura incessantemente prazer e satisfação externa por meio dos sentidos. “O caminho na kriya é fazer com que o praticante se volte para dentro e reconheça sua verdadeira natureza".
Esse retorno é possível, segundo ele, por meio da prática de 12 vezes seguidas de um tipo muito especifico de pranayama (nome dado às práticas respiratórias do yoga) e que é revelado por um mestre no momento da iniciação em kriya yoga. “Com a prática regular do pranayama, se alcança o estado de pratyahara, ou seja, de introspeção dos sentidos".
Quinto membro do yoga, pratyahara significa, na definição do iogue T. K. V. Desikachar4, um estado em que os sentidos não se nutrem daquilo que os estimulam. “Em pratyahara, rompemos por completo essa ligação entre a mente e o sentidos, e eles se retraem [...] é como se as coisas estivessem espalhadas com todos os atrativos diante dos nossos sentidos, mas fossem ignorados; como se os sentidos permanecessem indiferentes e não fossem influenciados”.
Um exemplo de pratyahara dado por Desikachar é o estado de concentração durante o pranayama. A mente, absorvida com a respiração, rompe com tudo o que não é respiração, como os sentidos e objetos externos. Assim, segundo o iogue, o estado de pratyahara ocorre naturalmente.
Mesmo depois do fim da prática de pranayamas, afirma Cugenotta, a mente pode permanecer introspectiva, sem a agitação da busca externa. "Percebemos que não há contentamento nem com o quê nem do quê; simplesmente há contentamento.”
A recomendação dos sábios indianos de se desapegar do passado e eliminar ansiedades em relação aos acontecimentos futuros pode, atualmente, soar como clichê. O agora, porém, é ainda o único tempo possível para estar em plenitude, segundo a filosofia do yoga. Cugenotta lembra que em kriya yoga, assim como na vida, é importante estar bem onde estamos. “O sentimento de plenitude vem do fato de você não querer estar em nenhum outro lugar que não seja o aqui, o agora, e isso permite que o contentamento intrínseco aconteça espontaneamente.”
Estar em contentamento e aceitar as coisas como são não quer dizer, entretanto, acomodar-se ou ser levado pelas situações. Nesse caso, o professor lembra o conselho dos mestres indianos: mudar o que pode ser mudado e aceitar o que não pode. "Quanto maior a tranquilidade da mente, maior o discernimento para distinguir entre as duas”, finaliza.
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