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Filosofia

Existencialismo e autoajuda: separados no nascimento

Ambos partem da ideia central de que o ser humano é livre e responsável pela própria vida
Bruno Torres
27/09/19

A literatura de autoajuda costuma ser rejeitada pelos ciclos mais intelectualizados, tratada como uma espécie de regressão cultural ou emburrecimento. Pois é irônico que o ponto de partida da autoajuda seja idêntico ao do existencialismo, corrente filosófica francesa altamente consagrada por esses mesmos ciclos. Uma comparação entre esses dois modos de pensamento será útil para compreendermos melhor a lógica particular da autoajuda.

A ideia principal da autoajuda é que sua felicidade só depende de você. Cada pessoa é dona de si e livre para tomar as próprias decisões. A felicidade depende apenas de como essa liberdade é exercida. Algo como dizer que se você acreditar em si será capaz de realizar qualquer coisa.

Já o existencialismo trabalha com a ideia de que a existência precede a essência, questão abordada pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) no livro O existencialismo é um humanismo: “o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define”. Não existem valores a priori que possam servir como bússola moral, mas os valores só se constroem através de ações. Neste sentido, cada pessoa deve se responsabilizar pela própria existência, porque é livre para agir como bem entender. Contudo, a liberdade pode resultar na angústia de não saber como agir.

Liberdade é condição

Tanto a autoajuda quanto o existencialismo partem da mesma ideia central – o ser humano é livre e responsável pela própria vida. Para estas duas visões de mundo, a liberdade não é uma escolha, mas uma condição – o ser humano é livre, querendo ou não. O que as distingue é a maneira como essa liberdade é pensada e como ela se relaciona com a vida prática.

A autoajuda gosta de pensar a liberdade como uma forma de autonomia. Se você é livre, isto significa que você é capaz de agir para garantir a sua felicidade. A liberdade é o que torna possível que cada pessoa realize os seus desejos. Por isso, a literatura de autoajuda sempre se dirige a alguém insatisfeito com a própria vida.

Final feliz

Imaginemos uma mulher de 30 anos. Um belo dia, ela se deu conta de que estava casada e tinha uma carreira, mas estava insatisfeita com a vida. Então ela decide largar o marido e a vida cotidiana para fazer uma viagem em busca da felicidade. É no início dessa viagem que começa o best-seller Comer, rezar, amar, de Elizabeth Gilbert – um desses livros modernos que fazem uso da ficção para contar uma história de autoajuda.

Quem nunca ouviu falar da obra já pode deduzir seu final: ela encontra a felicidade. No último capítulo do livro, depois de contar resumidamente o seu final feliz, a autora se defende – “Isso – eu reconheço! – é um final de conto de fadas quase ridículo para esta história, que parece ter sido tirado do sonho de alguma dona de casa. [...] Porém, [...] eu não fui resgatada por um príncipe; eu administrei o meu próprio resgate”.

Para a autora, sua história seria um conto de fadas se a felicidade viesse de graça, sem que ela tivesse se esforçado para consegui-la. Mas a promessa do livro é quase tão fantasiosa quanto um conto de fadas. O leitor fica com a sensação de que ele também pode ser feliz, basta ter coragem para correr atrás dela – e isso raramente é verdade, pois a coragem para mudar a própria vida não é uma garantia de que as coisas vão correr bem.

Em sua viagem, a autora aprende a aceitar seus defeitos e a ser grata pelas oportunidades que aparecem. Nas mesmas circunstâncias, ela poderia acabar triste e solitária. Na Itália, ela diz ter aprendido o prazer de comer sem culpa, mas ela poderia ter engordado de tanto comer e perdido toda a autoestima. Na Índia, ela diz ter aprendido a importância da reza e da gratidão, mas poderia não ter aprendido nada depois de gastar todas suas economias com um monge. No final de sua história, tudo dá certo – mas seria provável ter dado tudo errado.

Destino trágico

Partindo do mesmo princípio, a literatura existencialista conta suas histórias de forma bastante diferente. Basta lembrarmos d' O estrangeiro, de Albert Camus. No início do livro, Mersault recebe uma carta que comunica o falecimento de sua mãe, mas reage com perfeita indiferença mesmo em seu enterro. Posteriormente, em um momento de frenesi, ele acaba cometendo um assassinato. Durante o julgamento, a acusação concentra-se no fato de que ele não chorou no enterro de sua mãe e, por isso, deveria ser um sociopata perigoso.

No final do livro, Mersault espera o dia de sua execução em uma pequena cela. Depois de rejeitar as tentativas do capelão da prisão de convertê-lo ao catolicismo, ele reflete sobre seu destino – “Como se essa grande cólera tivesse lavado de mim o mal, esvaziado de esperança, diante dessa noite carregada de signos e estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo”. Se Elizabeth chega ao final do livro como um conto de fadas, Mersault chega ao final do livro sem esperanças, constatando a própria insignificância.

Tal como Elizabeth, ele também se sente feliz. Mas, para ele, felicidade é algo bastante diferente de um conto de fadas. “Ao percebê-la [a indiferença do mundo] tão parecida a mim mesmo, tão fraternal, enfim, eu senti que havia sido feliz e que eu era feliz mais uma vez”. Elizabeth se sente feliz porque superou obstáculos e viu que seus esforços tiveram resultado. Ao final do livro, ela sente que seu destino está em suas mãos, enquanto Mersault termina o livro constatando o oposto. Ele percebe que foi livre, mas viveu a vida com indiferença, e só foi feliz porque também o mundo foi indiferente a ele durante toda a sua vida.

Para o existencialismo, a liberdade aparece mais como um destino trágico do que como uma forma de autonomia. Essa corrente filosófica não se interessa pela história da mulher que encontrou forças para mudar de vida, mas pela história do homem medíocre que não sabe como ou por que agir. Para o existencialista, a vida humana é sempre caracterizada pela angústia de não saber em que sentido exercer a liberdade.

A autoajuda tem razão em dizer que o homem é livre, no sentido de que ele é responsável pela própria existência. É correto dizer que ninguém pode agir por outra pessoa e que toda ação é fruto de uma escolha, e é possível pensar que o homem é responsável pela própria felicidade, uma vez que apenas suas ações constroem os valores que determinam o próprio significado da felicidade.

Desejo

Nem sempre nós conseguimos ser felizes tal como queríamos. Muitas vezes fracassamos em nossos objetivos e acabamos desiludidos. Nas histórias de autoajuda, tudo geralmente se passa como se nada pudesse dar errado. No entanto, muitas vezes os nossos desejos são maiores do que a possibilidade de realizá-los - e isso nem sempre é responsabilidade nossa.

A verdade é que muitas vezes não temos força e nem coragem para tentar realizar os nossos desejos e devemos nos responsabilizar por isso. Ao mesmo tempo em que podemos comprar a ideia de que somos responsáveis pela própria felicidade, contraditoriamente podemos culpar os outros por nosso fracasso – o mau humor do chefe pela demissão, a incompetência dos colegas pela má qualidade do trabalho em grupo, os problemas da adolescência pelo relacionamento ruim com os filhos.

Nós podemos comprar a promessa da autoajuda de que a vida pode ser diferente, mas em muitos aspectos ela não pode. Pode ser que a vida exija tanto que não sobre tempo para tomarmos posse do nosso destino em uma jornada em busca da felicidade. Somos constantemente bombardeados com a ideia de que podemos encontrar forças para realizar nossos desejos, mas quando chegamos em casa cansados do trabalho, pode ser que queiramos apenas sentar no sofá e assistir à novela.

Mais difícil do que nos livros

Isso não tira a verdade do fato de que podemos mudar nossas vidas e realizar nossos desejos. Só que isso pode ser mais difícil do que os livros de autoajuda prometem, e certamente exige mais coragem do que costumamos supor.

A autoajuda pode iludir quando promete a felicidade como uma consequência direta da liberdade e quando ela oculta a força bruta de tudo aquilo que se opõe aos nossos desejos. Quem lê autoajuda sem se iludir por suas promessas de felicidade pode, contudo, se aproximar do existencialismo e realmente se responsabilizar pela própria existência.

Foto: Thinkstockphotos; Jonathan Kos-Read / Flickr: USA - Wall / CC BY-ND 2.0


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