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Filosofia

Errar é o menor dos problemas

Dificuldades na aprendizagem pedem atenção em tempos de medicalização excessiva das crianças
Bruno Torres
27/09/19

O ser humano vive em desenvolvimento constante. Isso significa superar obstáculos para conquistar novos conhecimentos – é assim com crianças e com adultos. Alguns têm mais dificuldades que outros. Durante o debate sobre Dificuldades de Aprendizagem promovido pela Sociedade Brasileira de Antroposofia, o respeito ao tempo de aprender de cada um foi o aspecto consensual na fala dos palestrantes. A conversa faz parte do Ciclo de Encontros com a Educação, realizado no Espaço Cultural Rudolf Steiner.

A solução para dificuldades de aprendizagem pode ser apenas o tempo: saber aguardar o momento de maturidade para aquisição daquele conhecimento. “Precisamos olhar o processo de desenvolvimento da criança, oferecer recursos e observar: se ela reage à intervenções propostas e consegue evoluir, tratam-se de defasagens pontuais”, afirma a painelista Carolina Toledo Piza, psicóloga, neuropsicóloga e mestre em ciências pela Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp). Mas há casos mais sérios, que exigem intervenção profissional: transtorno de déficit de atenção, hiperatividade, dislexia. “Se as dificuldades são persistentes e específicas, e requerem energia para serem transpostas, pode ser alguma dificuldade mais elaborada que precisa ser analisada com muita cautela”, afirma Piza.

O diagnóstico pode estar errado

“O grande problema é que estamos vivendo uma banalização da medicalização”, defende Beatriz de Paula Souza, psicóloga, coordenadora do serviço de atendimento psicológico da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. “Qualquer dificuldade já é classificada como patologia que pode ser resolvida com o uso de remédio, mas nesse caso apontamos e culpamos a criança como causa do problema e ocultamos a importância do fato de que o ambiente também deve ser modificado”, afirma Souza.

Ela alerta para a atuação da indústria farmacêutica, que chega a ser subliminar: “Em vez de dizer ‘estou triste, passou’, a pessoa fala que está deprimida. Adultos e crianças têm inúmeras demandas sociais, ficamos agitados e ansiosos e nos auto-intitulamos hiperativos; usa-se antidepressivo para suportar exigências profissionais”, exemplifica a psicóloga. "Haja remédio", diz Souza.

A importância de se ter um diagnóstico preciso também foi reforçada pela painelista Rita Rahme, médica antroposófica e presidente da Associação Brasileira de Medicina Antroposófica. Ela contou o caso de um aluno do curso de medicina que, após uma aula sobre distúrbios da dislexia, procurou a professora para saber mais sobre o caso porque identificou características em si e suspeitava ter o problema. “Descobri cedo que queria ser médico. Passei a adolescência estudando muito. O que meus amigos resolviam rapidamente, eu demorava muito mais para resolver, então eu estou me perguntando”, disse o aluno, “se eu tivesse sido diagnosticado e atendido corretamente, talvez eu pudesse ter tido uma adolescência.”

O ambiente na escola

Em casos que não são evidentes, a observação do desenvolvimento da criança ocorre principalmente na escola. Nem tudo é perfeito nesse universo: rótulos podem ser comuns, caso os professores e alunos não souberem lidar com o excesso de ansiedade de um "gênio", com os atrasos de outros e, ainda, com comportamentos não desejados.

“Quando nós, psicólogos, analisamos uma queixa escolar, nosso olhar é para a criança dentro da rede de relações – reproduzimos os processos constituídos nessa rede onde está havendo o sofrimento”, explica Souza. “Antes de se dizer que uma criança é agitada no ambiente escolar é preciso analisar quais as condições de ensino: a classe é agitada?”, pergunta Souza. “Cinquenta por cento dos fracassos na escola vêm da falta do vínculo com o processo de aprendizagem”.

A genética interfere?

São muitos os aspectos que influenciam a aprendizagem, afirma a psicóloga Carolina Nikaedo, doutoranda na área de desenvolvimento cognitivo infantil. Durante o debate, ela destacou que a questão genética existe e direciona o desenvolvimento, mas não é determinista. A herança interfere até no comportamento, definindo maior ou menor probabilidade de absorção de conhecimento, mas, como se trata de um processo em construção ao longo da vida, as questões socioambientais exercem forte influência.

“Traçando um paralelo entre a construção da educação e de uma casa, de zero aos 6 anos, é como se fosse estabelecida a fundação. Ocorrem as conexões neuronais que vão interferir em habilidades complexas, necessárias para o ensino abstrato”, diz Nikaedo.

As próximas etapas do aprendizado são multifacetadas e mais complexas, porque são mais influenciadas por fatores biológicos e socioambientais. A psicóloga lembra que diferente do processo de fala, que é da natureza humana e basta a exposição para ser incorporado, o aprendizado da leitura e da escrita é uma exigência cultural e exige adaptações cerebrais. “Não podemos justificar toda dificuldade a partir de aspectos socioambientais, tampouco podemos medicalizar qualquer dificuldade relacionando-a com o aspecto biológico”.

“Em termos neurobiológicos, sabemos que o cérebro tem tempos diferentes para cada tipo de aprendizagem – idiomas, instrumentos musicais, que englobam processos neurobiológicos e neuroemocionais“, explica a médica Rahme.

Identificar um transtorno de aprendizagem é algo profundo e deve ser feito por mecanismos e estudos cuja conclusão é o psicodiagnóstico. “O diagnóstico vem do conhecimento, já o rótulo vem do preconceito”, conceitua Rita Rahme.

Inteligência emocional

“A escola que não ajuda, atrapalha bastante”, afirma a escritora Helena Trevisan, presente na plateia do debate. Para ela, a escola precisa permitir que desabrochem as potencialidades, a despeito das dificuldades. “A escola deve descobrir como transformar criativamente as dificuldades em potência de aprendizagem”, diz André Gravatá, mediador do Ciclo e coautor do livro Volta ao mundo em 13 escolas.

“É preciso ver se a escola eleita pela família é a escola certa para a criança”, destaca Nikaedo, dizendo que pode haver diferença entre irmãos e apesar da logística difícil de levar cada filho em um local, os pais devem considerar que uma escola ótima para um filho pode ser péssima para outro. “Os modelos de trabalho mudaram e solicitam novas habilidades, assim como exigem que a escola mude”, diz Nikaedo.

“Por ser fonte de resolução de conflitos, as habilidades socioemocionais são tão importantes quanto as cognitivas”, analisa Carolina Piza. “Quem sabe até onde uma criança com Síndrome de Down pode chegar?", reflete. "No passado, o canhoto era considerado incapaz de ter dominância. Talvez as dificuldades de aprendizagem hoje rotuladas possam, no futuro, ser vistas de forma mais natural”, conclui Piza.

Foto: Thomas / Pixabay: weinstock / CC0; cherylt23 / Pixabay / CC0


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O papel do teatro na escola
Neurociência e a pedagogia Waldorf
Bullying: o lado difícil da convivência
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