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Filosofia da Educação

O que é ser indígena na universidade?

Cresce a entrada de indígenas no ensino superior, porém os desafios para essas pessoas continuam imensos e a recepção no mundo acadêmico segue marcada por certo "estranhamento"
Bruno Torres
27/09/19

“São sempre as mesmas perguntas: ‘Nossa, você é índio mesmo? Mora na aldeia? Mas o que você está fazendo aqui? Por que veio de tão longe? E a sua família? Você fala seu idioma? É sempre aquele imaginário de mais de 500 anos atrás”, conta Mayara Suni, estudante indígena de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, Ufscar. A instituição a qual ela está matriculada começou em 2008 um vestibular destinado apenas para indígenas, com 40 vagas oferecidas – uma em cada curso. Suni, que é da etnia Terena, deixou sua família e sua comunidade em Mato Grosso do Sul para ingressar em um lugar que, mesmo com a presença de indígenas há 7 anos, ainda apresenta um “estranhamento” diante deles.

Caso semelhante é o de Márcia Mura. Ela saiu de Porto Velho, em Rondônia, para cursar doutorado em História Social na Universidade de São Paulo (USP) a convite de um professor da universidade. Antes disso, ela havia tentado passar no mestrado da instituição três vezes, mas não conseguiu ingressar em razão da prova de proficiência em língua estrangeira (que geralmente exige inglês, espanhol ou francês avançado). A adaptação na USP foi difícil, principalmente porque não existem muitos indígenas na universidade. Ao contrário da Ufscar, a USP não adota um vestibular diferenciado ou uma política de cotas.

Debatendo o tema

Falando para uma plateia de estudantes de uma universidade que ainda resiste a abraçar mudanças, as duas mulheres se somaram a Ailton Krenak, grande liderança indígena no país, para debater a “indigenização da universidade”, na XI Semana de Ciências Sociais da USP, realizada final no mês de maio último.

Márcia Mura, em pé com a criança no colo, e Mayara Suni sentada à direita

Histórico

“Nos últimos 10 anos, o Brasil está num processo de incluir populações que, historicamente, não eram nem cogitadas de frequentar as nossas universidades”, pontua Krenak. O país, através da expansão das universidades federais, dos programas de bolsas de estudo e de financiamento estudantil, como ProUni e Fies, viveu uma transformação significativa no acesso ao ensino superior. Segundo dados do IBGE, a proporção de jovens entre 18 e 24 anos que frequentavam o ensino superior em 2002 era de 9,8%. Em 2012, essa taxa chegou a 15,1%. Nesse mesmo ano, a Lei de Cotas veio alterar ainda mais esse cenário e impulsionou a entrada de negros e indígenas nas universidades federais.

Como consequência dessas políticas, “na última década, nós temos uma população significativa de pessoas indígenas, desde o Rio Grande do Sul até o Alto Rio Negro, na Amazônia, se deslocando dos seus lugares de origem e vindo, especialmente para o Sudeste, mas também para a Amazônia e o Nordeste, para atender, de certa maneira, uma chamada das universidades através de editais e de programas dirigidos a essa parcela da população”, comenta Krenak.

Ailton Krenak (à esquerda)

Choque cultural

O acesso à universidade ficou mais fácil, mas o “choque cultural” ainda é grande, como conta Suni: “Quando a gente entra no curso existe um estranhamento não só dos alunos, mas também dos professores. No caso desses, muitos sempre vêm com aquela pergunta: como vou ensinar esse aluno? Como se o indígena fosse um alienígena. Vejo isso principalmente na área de exatas”, revela a estudante de Ciências Sociais.

Uma saída para esses alunos superarem as dificuldades de estudar em ambientes tão pouco preparados para eles é a união. Suni explica que, para atuar em conjunto e transformar a universidade, os estudantes indígenas da Ufscar criaram o Centro de Culturas Indígenas, onde se reúnem, conversam, trocam experiências e discutem ações para melhorar a relação deles com a instituição.

Mura, por sua vez, também criou sua comunidade, mas ela veio de fora do campus. Sem a presença de estudantes indígenas, a doutoranda contou com a ajuda dos “parentes” (como ela chama os amigos de outras etnias) de São Paulo para se adaptar à nova realidade. Em seu apartamento, no conjunto residencial dos estudantes (Crusp), onde morava com os dois filhos adultos (um de 18 anos e outro de 20), Mura criou uma verdadeira “casa indígena” que se tornou referência no local.

Os “parentes” são de várias etnias: xavante, pankararu, potiguara, tupinambá, sateré, maputi, entre outras. Eles ajudaram Mura a permanecer um ano em São Paulo. “Deixei de ficar sozinha porque a gente estava junto. Na USP, não havia outros alunos [indígenas] matriculados, mas os parentes vieram para somar comigo e me fortalecer aqui dentro. E eu só consegui ficar o ano todo aqui por causa deles. Eles me deram o maior suporte para orientar e envolver meus filhos nas ações indígenas, porque eu tinha medo deles ficarem nessa cidade”, relata Mura.

E depois da universidade?

Como se não bastassem todos os desafios que os estudantes indígenas enfrentam para concluírem seus cursos no ensino superior, a questão que fica é: como conciliar o conhecimento adquirido com a sabedoria tradicional de cada povo? Suni comenta que a universidade exige contrapartidas do estudante: “quando os indígenas entram na universidade são cobrados para estudarem e voltarem para a comunidade, como se o nosso ingresso, o nosso esforço dentro da universidade, já não fosse uma contribuição.”

Krenak vê todo esse processo de “indigenização da universidade” com ressalvas. “Em que medida o que nós estamos assistindo ou colaborando não é a captura de visões, de formas de transmissão do conhecimento que historicamente deram conta de manter essas populações com suas visões de mundo e com suas formas próprias de se constituir?”, questiona a liderança indígena. O receio é de que valores da sociedade dominante que se confrontam com as perspectivas da luta indígena sejam transmitidos aos jovens, que por sua vez acabarão inserindo-os em sua realidade local.

“Eu sei que pode parecer uma crítica muito rasa (...), mas se nós imaginarmos que temos cerca de 210 amostras dessas pequenas sociedades com boa parte delas ainda profundamente firmadas em valores locais, com tradição de oralidade e uma relação geracional importante, e você tira os jovens dali, os traz “para fora”, forma uma ou duas gerações desses jovens e coloca-os de volta aos lugares de origem... Quanto isso estará contribuindo para que essa gente continue tendo capacidade de resistência?”, indaga Krenak.

“Pensando inclusive que um dos temas mais importantes dessas comunidades têm sido lutar por territórios, para demarcarem e para viverem nesses lugares. Se eles vão viver com os valores daqui ‘de fora’, fica a questão então por que eles querem ter território, não é mesmo?”, diz Krenak.

Essas são perguntas que a geração dos indígenas que agora tem um lugar na universidade terá de responder no futuro. O que podemos perceber de imediato é que, diante das dificuldades enfrentadas, os elos que os indígenas criam enquanto coletividade vão muito além das quatro paredes de uma sala de aula.

Fotos: Gustavo Rubio Claret Pereira/Ciências Sociais - USP


Veja também: Jerá Guarani fala sobre a exploração predatória da água em São Paulo Daniel Munduruku e a educação O prato servido nas escolas indígenas

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